Movimento de turistas causa até congestionamento de aviões em Porto Seguro
Correio – Enquanto pedalava na manhã deste domingo (27) pela BR-367, uma das vias que levam a Trancoso, o guia de turismo Daniel Isidório viu uma cena que chamou a atenção: cerca de 40 vans e carros seguirem para o distrito de Porto Seguro. Os turistas não param de chegar àquela região do sul baiano – que engloba ainda Caraíva, outro distrito de Porto Seguro, e a cidade de Una. E o engarrafamento não era só por terra. No céu, jatinhos têm dado voltas até conseguir pousar.
Os turistas começaram a chegar à região de Trancoso e Caraíva dia 26, sobretudo em aviões particulares ou fretados. Anteontem à noite, por volta das 19h, uma aeronave precisou pousar em Porto Seguro e esperar ser liberada para descer em Trancoso, no Aeroporto Terravista – privado, em um condomínio. Entre dezembro e janeiro, são esperados, só em Porto Seguro, 600 voos regulares, segundo a Secretaria Municipal de Turismo.
“Muito voo comercial chegando, muito jato particular. Aqui tem rodado o comentário que muitos voos estão tendo até que esperar para pousar”, conta Daniel.
Em Trancoso, no Aeroporto Terravista, um funcionário disse que passou a haver concentração de voos, como já era esperado para o período. Somente anteontem foram 48 voos. Em uma alta temporada como o Carnaval, Salvador recebe, em média, 170 voos diários, conforme estimativa Secretaria Municipal de Cultura e Turismo (Secult) para a folia de 2020.
O perfil de quem chega àquele perímetro é basicamente sudestino – sobretudo paulista – e representa o pico da pirâmide econômica brasileira. Anteontem, o Tribunal de Justiça da Bahia concedeu uma liminar que atendeu um pedido do governo da Bahia proibindo a autorização “de shows e festas, públicas ou privadas” em Porto Seguro. O prefeito eleito, Jânio Natal (PL), havia dito que liberaria eventos após a posse. Mas a decisão, como a pandemia, não afastou os turistas mais abastados, que alugam mansões para festas privadas – a Polícia Militar acabou com uma festa com 200 pessoas em Trancoso. Já desembarcaram no vilarejo as influenciadoras Thássia Naves, Camila Coelho e a empresária Cris Arcangeli.
“Caraíva virou balada a céu aberto”
Mas, em Caraíva, distrito de Porto Seguro um pouco mais longe que Trancoso, a festa também acontece no meio da rua, uma vez que a maioria dos bares e restaurantes estão com horários limitados, capacidade reduzida e sem permissão para música ao vivo.
“Caraíva virou a balada a céu aberto. Está muito absurdo, as pessoas bebem e se drogam no meio da rua, é muito barulho, muita aglomeração e muito desrespeito. É uma vila sem regra, não tem ninguém fiscalizando. Atravessou o rio, cada um faz o que bem entende”, narra a arquiteta e ativista Rafaela Zincone, que mora em Caraíva há 14 anos e integra o Conselho Comunitário Ambiental de Caraíva.
Segundo ela, os turistas que vão até a vila buscam justamente isso: liberdade e zero restrições. “O turismo aqui não é consciente, as pessoas vêm para explorar. A maioria é de São Paulo, Rio de Janeiro, de cidades que estão cheias de restrições. Então, eles saem do Sudeste procurando destinos mais frágeis, para extravasar, onde não tem regras, para fugir e fazer as coisas que não podem”, critica a moradora.
A atração de turistas faz a população da vila, que tem cerca de 700 nativos, ficar sete vezes maior todo verão. As consequências, este ano, para Rafaela, serão agravadas com a pandemia. “A população flutuante do fim de ano é sete vezes o tamanho da população da vila. Então, a gente vai sofrer duas crises, a superpopulação, que gera o triplo de lixo, poluição no rio, contaminação do lençol freático, e, ao mesmo tempo, temos a pandemia, o que gera um caos absoluto, porque nossa população está num lugar em que o ecossistema é frágil, a saúde é frágil e é fronteira com o território indígena”, argumenta a ativista.
Uma nativa, que pediu anonimato, afirma que está impossível viver na vila durante esse período, principalmente pela falta de consciência dos turistas em seguir os protocolos sanitários. “A vila está superlotada. A maioria das pessoas que chegam aqui não se conscientizam com o nosso viver. Eles não usam máscara, não respeitam, fazem várias aglomerações. É muito lixo, muita droga, muita bebida. Para conviver em Caraíva hoje, infelizmente, está muito difícil. A infância que tive aqui meus filhos não vão ter e não estão tendo mais”, conta. Ela é mãe de três filhos, e, um dia, um deles encontrou cocaína em um tênis enquanto brincava na rua.
Sem estrutura
A moradora ainda comentou sobre a dificuldade de estrutura da região. “Moramos em um lugar que tudo pra gente é com muita dificuldade. Quando uma pessoa passa mal, ela tem que ir pra Porto Seguro de ambulância, isso quando a ambulância e o motorista estão disponíveis, ou quando a ambulância não está quebrada. O Hospital de Porto Seguro também é bem precário e muita gente não tem condições pra ficar em hospital particular. Estamos à mercê do poder público, somos esquecidos”, afirma.
“E tem alguns empresários que vem para cá, ganham dinheiro, e não estão nem aí para nossa vila. Eles têm condições, podem mandar um jatinho vir pegar a família se ficar contaminado de covid, coisa que não acontece com a gente. Eu, meu vizinho, nós não temos condições”, relata.
As comunidades indígenas também sofrem. Uma delas é a tribo Xandó, de Hamilton Santos, 43, mais conhecido como Marrudo. A comunidade tem 700 índios pataxós e integra o Parque Nacional de Monte Pascoal – que foi a primeira porção de terra avistada pelos colonizadores portugueses, segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). O medo de Marrudo são as consequências que a falta de controle e suporte do poder público possam gerar na localidade.
“Está terrível, ninguém controla. O perigo é que as pessoas estão trazendo esse vírus, achando que é brincadeira. Eles ficam brincando com vidas alheias, decidiram vir para a Bahia causar aglomeração. A gente mora em um vilarejo, sem uma estrada que preste, sem saúde direito e só com três policiais, que, coitados, o que eles podem fazer para controlar 10 mil pessoas? Nada. Então, a gente fica nesse fogo cruzado, estamos no final da fila e com Deus na frente porque suporte do poder público não tem. Nosso medo é essa baderna agravar a situação em nosso lugar e complicar as coisas”, desabafa o pataxó, que faz parte do Conselho e da Associação de Nativos de Caraíva (Anac).
O pataxó Raoni, da aldeia de Barra Velha, também se demonstra preocupação com o fluxo de turistas neste momento de calamidade da saúde pública.
“Toda a região acaba recebendo um fluxo de turistas muito grande e, para nós, enquanto povo pataxó, é muito preocupante, porque ainda estamos passando por esse processo da pandemia e nossa comunidade é muito próxima de Caraíva. A gente precisa de um posicionamento das nossas autoridades políticas e sanitárias para poder orientar e dar as contribuições devidas”, conta Raoni.
O que dizem os empresários
O empresário Agrício Lemos, que mora em Caraíva há sete anos, reclamou da falta de organização da prefeitura de Porto Seguro. Segundo ele, o controle seria melhor se as festas privadas fossem permitidas, porque evitaria que as pessoas ficassem nas ruas. “Está muito desorganizado. Abriram tudo, menos uma festa onde você pode controlar o público. Nós, que trabalhamos com CNPJ, somos proibidos de fazer eventos porque nossos eventos que iriam disseminar o coronavírus. Houve uma demonização da música como o grande vilão do verão. E agora estão acontecendo várias festas clandestinas, todo mundo sem máscara e com caixa de som na rua”, repudia o empresário, que é dono de uma pousada e uma casa de forró na vila.
Outro empresário de Caraíva, que não quis se identificar, afirma que a culpa não é do jovem ou turista, mas das autoridades públicas. “O governo e a prefeitura fizeram campanha pedindo para o turista vir, mas, ao mesmo tempo, pediram a toda a iniciativa privada que trabalhasse com limitação de público e sem estrutura de música. O turista dessa semana é jovem e nós não nos organizamos para receber esse público. Agora vai pedir para ele ficar trancado em quarto de hotel? Ao invés de se organizar em espaços que têm banheiro, restaurantes, com espaçamento social, que solicitam máscara, fizeram com que ninguém possa trabalhar. E a redução foi tão grande que o jovem está sem opção, ele não é culpado por isso”, diz”.
Procurada, a prefeitura de Porto Seguro não respondeu até o fechamento desta reportagem.